Maria Dolores relata sua vida desde os pequenos lápis até o terremoto

25/02/2013 00h00 ⋅ Atualizada em 29/10/2019 16h01

 

Ainda com pouca idade, já apresentava as características de uma artista perfeccionista e observadora, em seus desenhos minuciosamente detalhados. Fora criada em bairro nobre de São Paulo. Sua família, de origem europeia, fez questão de oferecer-lhe uma educação tradicional, numa escola de freiras francesas. Como descreve a própria Maria Dolores Alves Cocco, docente do Departamento de Arquitetura da UNITAU, os pais tinham a habilidade de individualizar o potencial de cada uma de suas meninas. Ao perceberem que a filha se interessava por desenhos, matricularam-na em uma oficina de artes.

O local era um porão, onde hoje funciona o Museu de Artes da Fundação Armando Alvares Penteado. Os estudantes do curso de Educação Artística eram os professores que desenvolviam atividades com crianças de até 12 anos em um ambiente rústico, com pranchões sobre cavaletes e toda a sorte de material de pintura. Maria Dolores mostrou do que era capaz com apenas cinco anos de idade. Em um papel canson, desenhou uma borboleta com a estrutura completa: corpo, cabeça, antenas, asas e tudo o que tinha direito. Era azul e transparente. A mãe dela foi chamada pela professora para conversar sobre o talento da menina, que precisava ser acompanhado e incentivado.

A partir daí, ela não saiu mais das artes. Fez diferentes cursos e tornou-se solista de violão. Na adolescência, apaixonou-se pela possibilidade de agregar o senso estético à técnica das grandes construções. No final dos anos 1970, ingressou no curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Mogi das Cruzes. Como universitária, teve a orientação de um docente, por quem sentia grande afeto, para focar na área de Restauração. No período de férias, chegou a viajar com um grupo de estagiários para trabalhar no restauro de escolas espalhadas pelo estado de São Paulo. “A experiência despertou em mim o interesse pela preservação. Os prédios antigos apresentavam melhor qualidade construtiva e qualidade de conforto térmico”, rememora.

Recém-formada, trabalhou como autônoma por três anos, antes de dar continuidade à carreira acadêmica. Em 1985, foi aprovada como bolsista da Organização dos Estados Americanos para fazer Mestrado em Restauro Arquitetônico na Cidade do México. Chegou àquele país em agosto, para estudar no maior museu de antropologia do mundo, mas não poderia nem imaginar o que viria pela frente.

No dia 19 de setembro daquele ano, o México viveu uma de suas maiores catástrofes naturais: um terremoto de 8.1 na escala Richter que devastou a capital. Os bolsistas estrangeiros foram retirados do país, e Maria Dolores foi a única a continuar em meio a toda a destruição – mesmo com a bolsa cancelada, ela não teve coragem de retornar. Ainda no colégio de freiras, aprendeu a nunca se desviar dos desafios que a vida lhe impunha.

“Na minha cabeça, o raciocínio era: eu posso ficar porque eu sobrevivi. Nada aconteceu comigo e aqui as pessoas precisam da minha ajuda”, lembra – sensível à memória, mas estável à emoção –, com o seu tom de voz baixo, palavra por palavra, numa sequência ritmada.

O programa do mestrado, a partir de então sem fomento, foi invertido, e a parte prática do curso foi antecipada. Os coordenadores e o alto escalão da prefeitura mexicana se reuniram com os alunos para combinarem como seriam as atividades dali para frente. Maria Dolores participou da restauração das áreas atingidas. A professora utilizou as habilidades adquiridas no estágio, dedicando-se, inicialmente, à adaptação de patrimônios públicos para vivência coletiva e, posteriormente, ao levantamento dos colégios danificados.

O episódio fez a docente refletir sobre o valor da profissão: fato de a arquitetura oferecer abrigo às pessoas, melhorando sua qualidade de vida e a importância de uma construção bem feita. Relembrando a tragédia mexicana, a professora Dolores mostra sua postura de oposição às obras provisórias, que se apresentam aparentemente seguras até que uma calamidade aconteça – e ninguém pode controlar a fúria da natureza!

Ainda no mestrado, foi convidada a fazer doutorado na Itália. Antes disso, voltou ao Brasil, quando passou a integrar o corpo docente da Universidade de Taubaté, em 1987.

Com o apoio da Instituição, a quem é muito grata, foi para a Itália em 1992 para se tornar doutora. Voltou, mais uma vez, em 1996, para o Brasil e também para a UNITAU – havia dado a sua palavra de que retornaria. Ela criara um vínculo com a Universidade, sua única ligação com o Vale, além dos amigos.

Trouxe da Itália um marido. O italiano Andrea que, como diz, não é Bocelli, mas também canta. Um amor de 18 anos com ponte aérea contínua.

Maria Dolores continua a viver no mesmo bairro onde nasceu. Pega a estrada em direção à Taubaté nos dias em que leciona na cidade. Carrega consigo os valores adquiridos na infância e os ensinamentos que a vida e os estudos lhe proporcionaram.

Cultiva amizades em todo o mundo e mantém o compromisso de repassar seus conhecimentos para os discentes, como relatou uma de suas alunas, momentos antes da entrevista que gerou este texto: “As lições que aprendi com a professora foram muito enriquecedoras. É importante que haja essa relação de proximidade com os estudantes e também a preocupação em ensinar, e enxergo essas qualidades na Maria Dolores”.

Pierre Cruz
ACOM/UNITAU